Resumo Completo Os Lusíadas de Luís de Camões
Resumo Completo do Livro Os Lusíadas de Luís de Camões.
OS LUSÍADAS (Luís Vaz de Camões)
1. O CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL
O século XVI é a consolidação de uma série de mudanças que já vinham se anunciando no mínimo, com mais intensidade, ao longo do século XV. O mundo passa por uma grande adaptação aos novos conceitos políticos, econômicos e culturais que estão surgindo. A esse longo processo cultural que provocou uma reorganização da sociedade deu-se o nome de Renascimento.
O Humanismo do século XV já havia introduzido mudanças no modo de ver o mundo do homem medieval. Pouco a pouco, o seu olhar começa a se desviar das alturas do céu e procura o que está à sua volta, O terreno passa a ser interessante a esse homem que até então só se preocupava com o espiritual. É claro que esse tipo de mudança manifesta-se de forma lenta e gradativa, alterando passo a passo vários setores sociais.
Estudiosos começam a se interessar cada vez mais pela cultura da Antiguidade, desenvolvida pelos gregos e pelos romanos e que teria passado de modo quase “congelado” durante a Idade Média, com poucas exceções. Admirado com a descoberta de um mundo surpreendente que já existira há séculos e séculos atrás, o homem do século XV toma consciência do processo de evolução cultural do qual faz parte. Ele pode construir uma nova realidade a partir dos ensinamentos deixados pelos antigos. Para isso, estuda, aprende latim e grego, traduz textos, toma contato com as mais variadas formas de expressão artística e científica da era clássica.
Percebendo que pode moldar a si próprio e ao mundo, o homem desperta também para a sua posição no universo que então conhece. Feito à imagem e semelhança de Deus, ninguém além dele pode, na terra, governar. O mundo é o ambiente feito por Deus para o domínio do homem: é o antropocentrismo que toma o lugar do teocentrismo medieval.
De essencial importância nesse processo foram as mudanças políticas definidas na Europa do século XVI. Nesse século, várias potências consolidam-se, provocando disputas territoriais e a consciência de uma identidade nacional. É a corrida nas Grandes Navegações. Portugal muito contribuiria para a nova demarcação geográfica. Em 1487, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, proeza nunca antes conseguida por nenhum outro navegador. Esse feito abre caminho para que outros navegadores portugueses possam procurar um novo caminho para as Índias e buscar na fonte as especiarias orientais tão caras à Europa. Colombo, representando a coroa espanhola, descobre as Bahamas, Cuba e São Domingos entre os anos de 1492 e 1493. Cabral, de Portugal, chega ao Brasil em 1500. Novas conquistas portuguesas passam a se suceder: descoberta de Madagascar, em 1501; estabelecimento em Sofala, Mombaça e Moçambique, em 1503; ocupação de Goa e Málaca, entre os anos de 1505 e 1507.
A burguesia, camada social que vinha crescendo em importância juntamente com a atividade comercial, provoca mudanças na estrutura econômica. Enriquecida, começa a disputar posição social com os nobres e o clero, que tinham seus direitos garantidos pelo nascimento e por Deus. A valorização do acúmulo de bens materiais acarreta o desenvolvimento do capitalismo mercantil. Além disso, a burguesia, desejosa de conquistar “ares de nobreza”, investe em cultura, incentivando a produção artística e científica.
É nesse ambiente que se desenvolverá a arte clássica.
2. A ESCOLA LITERÁRIA
Devido às modificações ocorridas nas diversas atividades do homem e ao ressurgimento do interesse pela Antiguidade greco-latina, a arte tomará novos rumos. Os valores estéticos seguem as rígidas normas da cultura antiga.
A Razão é a palavra-chave da cultura renascentista. Em busca de equilíbrio, o homem acredita que deve manter-se centrado, evitando o predomínio da emoção. O racionalismo deveria controlar todo o sentimentalismo.
De influência antiga também é a crença de que existiria uma “autoridade” em matéria de beleza. Modelos de perfeição estética são definidos a fim de servirem como parâmetro, conceito chamado de mimese. Dessa maneira, obras da antiguidade clássica como Odisséia e Ilíada, de Homero e Eneida, de Virgílio passam a ter seu estilo imitado pelos artistas do século XVI, buscando:
perfeição formal na correção gramatical, na linguagem erudita, no rigor métrico e rímico.
na utilização da mitologia paga.
na utilização e distinção dos gêneros épico, lírico e dramático.
na busca de verdades universais.
O Neoplatonismo
Uma das grandes influências do mundo antigo sobre o homem renascentista foi a filosofia platônica, retomada em meados do século XV, inicialmente por estudiosos da cidade de Florença.
Para o filósofo, existiriam dois mundos: o sensível, onde vivemos, e o inteligível, onde existiriam as idéias essenciais como Deus, Beleza, Perfeição, Amor etc. Tudo o que somos e vemos no mundo sensível, não passaria de sombra, reflexo imperfeito das idéias do mundo inteligível. Portanto, viveríamos numa grande ilusão, num grande engano, em busca de verdade que só encontraríamos no outro mundo. Essa busca aconteceria porque nossas almas já viveram no mundo ideal, já conheceram, desse modo, a Beleza. Daí, a insatisfação sempre que realizamos os nossos desejos no mundo das sombras: outras ambições vêm logo tirar o prazer da primeira realização. Os amores, particulares, terrenos, por exemplo, seriam apenas uma ânsia de reviver o Amor (maiúsculo, essencial, universal) do mundo das idéias.
A retomada das idéias platônicas fez-se com uma aproximação aos ideais cristãos. O mundo ideal, com isso toma-se muito semelhante ao paraíso cristão. A essa retomada dá-se o nome de neoplatonismo.
3. O AUTOR: VIDA E OBRA
A vida de Luís Vaz de Camões é cercada de hipóteses devido à falta de documentos. Não se sabe ao certo a origem e a data de seu nascimento. Teria nascido em 1524 ou 1525, talvez em Lisboa, para outros em Coimbra, filho de Simão Vaz de Camões e de Ana de Sã Macedo, cujo nome também não se tem certeza.
De família pobre, não se sabe ao certo se teria estudado em Coimbra, no Mosteiro de Santa Cruz, mas sua obra indica vasta erudição, garantida por uma escolaridade apurada ou por autodidatismo.
Serviu como militar no norte da África, onde perdeu o olho direito em combate. É certo que freqüentava a corte em 1550 quando morou em Lisboa. Sempre envolvido em confusões, foi preso em 1552 por ter agredido um oficial do rei e só posto em liberdade no ano seguinte, com a condição de partir para o exílio que duraria 17 anos. Mais dificuldades e passagens pela cadeia o esperavam no Oriente. Passou pela Índia (Goa), China (Macau), onde teria arrumado uma companheira que morreu no mesmo naufrágio em que Camões salvou Os Lusíadas. Passando por Moçambique, vai preso novamente e, finalmente, com a ajuda de amigos, consegue o regresso a Portugal.
Em 1572, publica Os Lusíadas. Como reconhecimento de seu valor, o rei D. Sebastião concede-lhe um pensão de 15.000 réis, paga irregularmente. Morre em 1580, pobre, enterrado como indigente, às vésperas da decadência de Portugal.
Obra
Camões compõe poesias líricas, um poema épico e três peças teatrais, além de algumas cartas. As duas primeiras são as de maior importância e, por isso, mais detalhadas a seguir. Nesse total, podemos perceber ambigüidades e conflitos entre o homem culto, humanista, gênio e o boêmio, aventureiro. O resultado desta oposição é a poesia de contradição e desconcerto que tanto marcará sua obra.
Obra lírica
A poesia lírica, publicada postumamente sob o nome de Rimas, traz as marcas de um homem dividido entre dois momentos: o Renascimento e a Idade Média. Formalmente, as poesias apresentam ora estruturas populares, seguindo o que se convencionou chamar de Medida Velha, ora estruturas clássicas, chamadas de Medida Nova. A primeira, comum durante a Idade Média, valorizava a redondilha maior e menor (sete e cinco sílabas poéticas, respectivamente). Já na segunda, destacam-se os sonetos, sem esquecer outras formas clássicas como a elegia, a oitava, a égloga, a epístola, a sextina e a canção. Quanto aos temas, os que mais freqüentemente aparecem são:
a natureza vista harmoniosamente e devendo ser reflexo para o mundo interior do homem;
passagens bíblicas servindo como pretexto para o poeta pensar o Amor e o Bem;
o amor analisado racionalmente, dissecado pelo poeta, e mais voltado para a idealização do que para a concretização. É o amor platônico;
o desconcerto do mundo, isto é, a percepção do poeta para a desarmonia que provoca o sofrimento do ser humano;
a brevidade da vida e a inconstância das coisas: a consciência de que a vida é passageira e o sentimento de inadaptação do poeta mais uma vez provocando o sofrimento.
É fácil perceber que os três últimos temas terminam por afastar o poeta do equilíbrio buscado pelo clássico. Nessas ocasiões, traços do desajuste barroco já se fazem notar na poesia camoniana. A essa antecipação da estética literária que mais se caracteriza por antíteses dá-se o nome de maneirismo.
Vejamos um exemplo da lírica de Camões:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Obra épica
A epopéia ressurgiu no Classicismo como mais um exemplo da influência do mundo antigo. Na Grécia, Homero deixa para a humanidade as epopéias Ilíada e Odisséia; em Roma, Virgílio nos deixa Eneida. Mas o que é uma epopéia?
Gênero que mais tarde será substituído pelo romance, a poesia épica era escrita em versos, caracterizando-se como um longo poema narrativo. A história épica não pode ser comum; deve ser grandiosa, mostrando episódios de bravura, coragem, guerra. O herói será tio grandioso quanto seu povo, pois tal história terá a preocupação de contar as aventuras de todo um povo. Na sua forma mais tradicional, até mesmo deuses interferirão para o bem ou para o mal na vida dos personagens; é a presença do maravilhoso, isto é, o sobrenatural, ajudando na efabulação da história. Uma história desse porte, como se vá, não pode ser contada com uma linguagem comum, coloquial, cotidiana. A perfeição formal característica dos antigos e do clássico exige uma linguagem nobre, eloqüente, tio grandiosa quanto a própria história. Finalmente, a herança antiga prega também, o rigor na divisão do poema, que deve ser composto por cinco partes:
1. Proposição: o assunto é apresentado.
2. Invocação: o poeta pede ajuda dos deuses para conseguir narrar a história da maneira que ela merece.
3. Dedicatória ou Oferecimento: oferecimento da obra a alguém ilustre.
4. Narração: cerne do poema; parte mais longa, é a história propriamente dita.
5. Epílogo: é o encerramento do poema.
4. ANALISE DA OBRA
Resumo do enredo
Portugal, como foi visto anteriormente, passava por um momento de grandiosidade diante das demais nações européias. Esse momento era ainda mais valorizado pelo espírito de nacionalismo que surgia nos séculos XV e XVI. Motivados com a liderança nas grandes navegações, foram várias as tentativas de fazer uma epopéia sobre o assunto e, com isso, registrar para a posteridade esse momento de glória.
Mas esse papel caberia a Camões. Respeitando o conceito da mimese, o poeta segue como modelo as epopéias clássicas de Homero e Virgílio para escrever Os Lusíadas, publicados em 1572. Derivado de Luso, que teria sido o primeiro português, o título chama a atenção para o povo português, cuja história será não só rememorada mas também reavaliada, desde seus momentos iniciais, com a origem e formação desse povo até as Grandes Navegações, com o retomo de Vasco da Gama para Portugal após ter descoberto as Índias. Essa viagem, aliás, será o elo entre os demais episódios. O poema contém dez cantos, 1102 estrofes com oito verso decassílabos heróicos, caracterizando a oitava - rima, com esquema ABABABCC:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 *
1. As ar - mas e os ba – rões as – si – na – la - dos
2. Que da ocidental praia lusitana B
3. Por mares nunca dantes navegados, A
4. Passaram ainda muito além da Taprobana, B
5. E em perigos e guerras esforçados A
6. Mais do que prometia a força humana, B
7. E entre gente remota ed!ficaram C
8. Novo reino, que tanto sublimaram; C
Canto 1
A proposição confirma as intenções do poeta de exaltar a imagem dos portugueses, cujo heroísmo será representado por Vasco da Gama e seus navegadores:
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Os modelos seguidos deverão também ser superados, para que se confirme a superioridade portuguesa:
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Segue-se a invocação, em que o poeta pede inspiração às Tágides, musas do rio Tejo:
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
A terceira parte, a dedicatória, é dirigida ao rei Dom Sebastião, mais nobre representante da nação lusitana:
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena cristandade,
Vós, ó novo temor da maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
(Dada ao mundo por Deus, que todo o mande
para do mundo a Deus dar parte grande (...)
Finalmente ainda no primeiro dos dez cantos, tem início a narração, com as naus de Vasco da Gama em plena viagem na Costa ocidental da África.. Simultaneamente, os deuses reúnem-se no Olimpo para um Concílio onde decidirão o futuro dos portugueses. Enquanto Vênus e Marte estão favoráveis aos bravos mortais, Baco opõe-se. Mas Júpiter, o mais poderoso, decide que a viagem deve prosseguir.
Canto II
Após livrarem-se de algumas trapaças de Baco com a ajuda de Vênus os portugueses, chegam a Melinde, onde são recebidos com festas.
Canto III
Vasco da Gama passa a ser o porta-voz da história de Portugal. A pedido do rei de Melinde, o navegador narra episódios importantes desde a formação de Portugal. Entre eles está a episódio de Inês de Castro, que conheceremos detalhadamente mais tarde.
Canto IV
A narração de Vasco da Gama prossegue até atingir os dias dos preparativos para o início da viagem em Portugal. Vasco da Gama conta então o episódio do Velho do Restelo, que também detalharemos depois.
Canto V
Continuando a narrar as suas aventuras, Vasco da Gama detém-se no episódio do Gigante Adamastor, personificação do cabo das Tormentas, cuja travessia foi o momento mais difícil da viagem até ali.
Canta VI
A viagem prossegue. Baco provoca uma tempestade que só é acalmada graças à intervenção de Vênus e suas Ninfas. Os portugueses finalmente chegam às Índias.
Canta VII
Após narrar o desembarque, o poeta conta as primeiras aventuras com os mouros.
Canta VIII
As relações já problemáticas com os mouros é dificultada pela intromissão de Baco.
Canta IX
Os problemas são resolvidos e a viagem de volta começa. Como compensação para as dificuldades, Vênus prepara uma surpresa aos portugueses: a ilha dos Amores, onde os marinheiros recuperam suas forças nos braços das ninfas.
Canta X
Vasco da Gama é levado por Tétis para ver a máquina do mundo. A viagem prossegue até a chegada a Lisboa.
As estrofes finais dão lugar a um tom melancólico com o qual o poeta profetiza o fim dos dias de glória para Portugal e critica a ganância do seu povo. É a quinta parte da epopéia, o epílogo.
É interessante lembrar que após oito anos da publicação da obra, Camões morre no mesmo ano em que Dom Sebastião desaparece na batalha de Alcácer-Quibir sem deixar herdeiros: Portugal cai sob o domínio espanhol.
Episódio de Inês de Castro (Estrofes 118 a 1 35)
A história vem sendo narrada na voz de Vasco da Gama, que apresenta os fatos mais marcantes de Portugal para o rei de Melinde. Além disso, a linguagem eloqüente e trabalhada, característica do Classicismo pode ser aqui também notada por meio dos freqüentes hipérbatos (frases invertidas). Veja-se por exemplo os versos 5 e 6 da estrofe abaixo: O caso triste e digno de memória / que do sepulcro os homens desenterra no lugar da ordem direta: O caso triste e digno de memória que desenterra os homens do sepulcro.
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória,
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e digno de memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi rainha.
Vasco da Gama, que vinha contando as aventuras portuguesas ao rei de Melinde, começa a narrar o episódio de Inês de Castro acontecido logo depois de vitórias gloriosas de D. Afonso IV. O episódio daquela que foi coroada rainha depois de ser morta é tão marcante que teria poder de desenterrar os homens.
Na estrofe seguinte, o eu-lírico volta-se para o deus Amor, como mostra o vocativo no primeiro verso. E a presença da mitologia pagã, caracterizando a presença do maravilhoso na epopéia. É possível perceber também a procura de uma justificativa para o episódio e, com isso, uma garantia de isenção da culpa para os portugueses:
Tu, só tu puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.
Numa espécie de devaneio, o poeta dirige-se ao deus Amor, responsável pelo sofrimento daqueles que lhe são prisioneiros. Somente ele poderia justificar a atrocidade feita a Inês.
O vocativo agora traz a presença da própria Inês, como se as imagens dela e do Amor misturassem-se diante do narrador. Talvez, com essa aproximação, o poeta quisesse dar à mulher amada, ares da própria materialização do Deus. Afinal, será ela o instrumento usado por ele para provocar o desvario de D. Pedro:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
O relato agora passa a ser feito para Inês. Os presságios da desgraça já são anunciados pelo poeta nos dias em que a moça ainda viveria na ilusão da felicidade, nos belos campos da região do Mondego. O destino não deixaria essa situação durar muito.
As lembranças dos amores nos vales do Mondego são ressaltadas na estrofe abaixo por meio da prosopopéia — atribuição de características animadas a seres inanimados, como podemos ver em lembranças que respondiam, sonhos que mentiam, pensamentos que voavam.
Do teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam,
E quando enfim cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
A região era marcada pelas lembranças dos amantes, o que servia de consolo para quando D. Pedro não estava por perto.
O vocativo que aparece abaixo volta a se referir ao amor. Uma distinção, porém, cabe ser feita em relação ao Amor citado na segunda estrofe. Como foi visto, lá, o Amor — com a maiúsculo — referia-se ao deus da mitologia pagã. Aqui, o amor — com a minúsculo — refere-se ao sentimento humano, universal. Enquanto o deus Amor, que aprisiona, parecia estar encarnado na figura de Inês, o amor, sentimento do prisioneiro, parece estar agora encarnado na figura do Infante:
De outras belas senhoras e princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor [desprezas,
Quando por um gesto suave te sujeita.
O príncipe recusava outras mulheres em casamento, por já ser prisioneiro do amor de Inês.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
O rei, pai de D. Pedro, percebendo o comportamento do filho e os comentários do povo,
A estrofe seguinte — que virá completar a frase da anterior num típico caso de enjambement, isto é, continuação de um verso no verso seguinte — já revela a ingenuidade do rei que acreditava livrar seu filho deste amor apenas provocando a ausência de Inês. Aqui o narrador desabafa, expondo o seu espanto com a atitude do povo português.
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co’o sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor mauro, fosse alevantada
Contra uma fraca dama delicada?
Resolve que Inês deve morrer, acreditando com isso libertar seu filho.
Inconformado, o poeta questiona: como pode um povo tão corajoso contra os inimigos mouros levantar a espada para uma dama indefesa?
O inconformismo do poeta na estrofe anterior dá lugar ao casuísmo na estrofe seguinte. Por vontade do destino — e não por responsabilidade do rei — Inês tem que morrer:
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
Os carrascos trazem Inês até o rei, que já está com piedade. Mas o povo, por razões falsas, insiste na sua morte.
Inês, triste e já com saudades do seu príncipe e dos seus filhos,
Para o céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
um dos duros ministros rigorosos),
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assim dizia:
Olha para os céus, com lágrimas nos olhos, enquanto um dos carrascos lhe segura as mãos. Depois, olhando para os filhos, dizia para D. Afonso, o avô:
Tem início o famoso discurso criado por Camões para que Inês tente conseguir a piedade e o perdão do rei. Os seus argumentos, respeitando uma regra estética do Classicismo, mas não a veracidade dos fatos, é carregado de alusões à mitologia pagã como podemos observar pelas presenças da deusa Natura e os personagens Semíramis, Rômulo e Remo:
- Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedosos sentimento,
Como co’a mãe de Nino já mostraram
E co’os irmão que Roma edificaram,
- “Se até nas feras mais brutas, cruéis desde o nascimento pela própria natureza, e nas aves agrestes que vivem das rapinas, mesmo elas já tiveram piedade de crianças, como aconteceu com a mãe de Nino e os irmãos que construíram Roma,
Chamando atenção do rei para a piedade que é possível encontrar até entre feras, Inês procura comover o avô com a imagem de seus netos, que ficariam órfãos com sua morte:
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzela
fraca e sem força, só por ter sujeito
o coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Tu que és humano (se é humano matar uma frágil dama por ser escrava de quem ama),
Tem piedade destas criancinhas já que tens da minha inocência
E se, vencendo a maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com demência
A quem para perdê-la não fez erro;
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
E se sabes dar a morte aos inimigos mouros, sabes também dar vida por meio do perdão a quem o merece.
Manda-me para o exílio em lugares gelados ou em desertos, onde eu viva chorando,
Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co’o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.
Coloca-me entre feras, e verei se encontro neles a piedade que não encontrei entre humanos. Ali, pelo meu amor por quem morro, criarei estas relíquias, que serão meu consolo.”
Após o discurso, mais uma vez o narrador isenta o líder português da barbárie que está por acontecer. O inconformismo volta-se para os carrascos que se deixaram levar pela insensatez:
Queria perdoar-lhe o rei benigno,
Movido das palavras que o magoam,
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?!
O rei queria perdoar-lhe, emocionado com as palavras de Inês, mas o povo e seu destino não lhe perdoam. Aqueles que desejavam sua morte, desembainham suas espadas.
Novamente o poeta questiona: ó peitos carniceiros, mostrai-vos ferozes e guerreiros contra uma dama?!
A morte de Inês é apresentada por eufemismos e comparações com passagens da mitologia antiga, como a história de Policena:
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co’o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:
Assim como aconteceu com Policena contra quem Pirro ataca com sua espada por ter sido companheiro de Aquiles; mas ela, com serenidade, olhando para a mãe, que enlouquece, oferece-se ao sacrifício.
Camões, como outros artistas que retrataram a morte de Inês de Castro, prefere a imagem da espada encravada no peito, sem dúvida, mais lírica, à do degolamento:
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas flores
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
Os matadores investem suas espadas contra o peito de Inês, usado pelo deus Amor para matar de amores d. Pedro, que depois de morta faria de Inês rainha. Os carrascos, porém, não pensaram na vingança do futuro rei.
A mitologia pagã volta ao discurso do narrador por meio da referência a história de Tiestes, com a intenção de realçar a barbárie cometida no episódio português:
Bem puderas, á Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, á côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!
O poeta agora dirige seu horror ao Sol: Melhor seria se te afastasse da terra neste dia, como fizeste quando Atreu fez Tiestes comer a carne de seus próprios filhos!
Em seguida aos vales do Mondego, dizendo que o nome de Pedro tão ouvida da boca de Inês naquela região foi por eles espalhado.
Mais uma vez, a comparação é usada para apresentar Inês morta:
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor co’a doce vida.
Assim como a flor arrancada pela menina perde o cheiro e a cor, tal está Inês, sem cor e sem vida.
A abordagem lírica do episódio termina com a criação de uma fonte mágica, dando ares ainda mais lendários ao episódio:
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
‘Dos amores de Inês’, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome Amores!
As filhas daquela região choraram a morte de Inês por longo tempo e suas lágrimas transformaram-se em fonte; o nome dado, que até hoje dura, foi “Dos amores de Inês”, ali acontecidos. O poeta termina concluindo com uma contradição: Vede que fresca é a fonte regando as flores, mas feita com lágrimas e cujo nome é Amores!
A verdadeira história de Inês de Castro
Filha bastarda de um fidalgo galego, Inês de Castro veio para Portugal como companhia de D. Constança, que vinha para se casar com o infante d. Pedro, futuro rei de Portugal. Logo surgem os rumores de um romance entre o príncipe e a moça. Para abafar o caso, o rei e sua nora decidem fazer de Inês madrinha do primeiro filho do casal. Isso significava criar laços de parentesco intransponíveis entre os amantes. Porém, D. Constança morre durante o parto do único filho que sobreviveria, o infante D. Fernando.
Com isso, o casal de amantes une-se ainda mais. Chegam a ter quatro filhos, um dos quais morre.
O escândalo amoroso ganha mais forma com as preocupações políticas. Os irmão de Inês eram inimigos do rei de Castela. O povo temia que D. Pedro, por amizade a eles, entrasse numa guerra aventureira contra Castela e submetesse Portugal ao jugo castelhano.
O terror político, mais do que os valores morais, levam o Conselho Real a decidir pela morte de Inês de Castro, o que acontece em 7 de janeiro de 1355, quando D. Pedro havia saído para caçar. Inês foi degolada e enterrada na igreja de Santa Clara.
A vingança não tardaria. O infante provoca praticamente uma guerra civil contra seu pai e os três conselheiros responsáveis pelo assassinato. Com o tempo, D. Pedro se contém e assina um “pacto de concórdia com o Rei.
A situação, porém, não se manteria assim. Dois anos depois, morre D. Afonso. D. Pedro, agora senhor da situação, persegue os assassinos de Inês refugiados em Castela. Dos três um conseguiria fugir. Os outros dois foram assassinados com requintes de crueldade: tiveram o coração arrancado, um, pelo peito, o outro, pelas costas. Esse era um ritual de vingança comum na Idade Média: os culpados eram punidos com a amputação da parte do corpo sobre o qual fora praticado o crime. Ferido no coração, esse fora o órgão escolhido por D. Pedro para se vingar.
A segunda parte da vingança incluía a exaltação de Inês. Passados sete anos de sua morte, o rei decide fazer um traslado do corpo em noite triunfal, com o povo iluminando as dezessete léguas de distância entre Coimbra e Alcobaça, onde fora preparado o túmulo real daquela que seria rainha depois de morta. Lá, uma estátua da moça foi coroada com todos os rituais de celebração.
A lenda de Inês de Castro
O mito do amor que vence a morte foi sempre algo que provocou a imaginação dos homens. Não é à toa, portanto, que a história de Inês de Castro ganhasse tamanha repercussão. A posição dos corpos dos amantes nos túmulos — pés contra pés — reforçou ainda mais a crença no amor eterno jurado na legenda do túmulo de D. Pedro: “Até ao fim do mundo”. Ao toque da trombeta do Juízo Final, quando os corpos se levantassem, a primeira visão dos amantes seria um ao outro antes de qualquer coisa.
A coroação da estátua de Inês também serviu como inspiração para a imaginação dos poetas. O símbolo toma-se realidade fazendo com que d. Pedro tenha coroado o corpo degolado de Inês. Alguns chegam mesmo a dizer que o rei teria obrigado a corte a beija a mão da morta.
Para os artistas portugueses, a cena preferida para retratar o sofrimento de Inês foi o encontro com o rei D. Afonso IV, pela sua força emotiva. Esse é o caso de Camões que, em Os Lusíadas, praticamente não aborda o final vingador e fúnebre da história, dando total enfoque à emotividade da cena protagonizada por Inês e D. Afonso IV.
Episódio do velha do Restelo
(Estrofes 94 a 104)
A cena mostra, logo de início urna massa aflita e desesperada com a partida de seus filhos e esposos. As mulheres, chorando, representam toda a multidão que ficava em terra firme vendo seus queridos partirem para o desconhecido:
Em tão longo caminho e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam;
As mulheres c’um choro piedoso,
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo
Qual via dizendo: — “Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará penoso e amaro
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mi te vás, á filho caro,
A fazer funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?
Uma mulher fala ao filho, que era seu amparo na velhice agora sofrida, por que a abandona agora para morrer no mar.
Qual em cabelo: — “O doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?
Outra, descabelada de desespero, pergunta ao marido, cuja ausência não sabe suportar. como pode ir se aventurar no mar, deixando-a; como pode trocar o amor que os une para seguir um caminho desconhecido
Nestas e outras palavras que diziam,
De amor e piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos as seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
O choro das mulheres era seguido por velhos e meninos, que também não partiam na aventura. A emoção era tanta que até os montes respondiam ao clamor da multidão; as lágrimas derramadas erma iguais aos grão de areia da praia em quantidade.
Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta ou fica, mais magoa.
Vasco da Gama determina que os marinheiros partam logo sem as despedidas costumeiras a fim de evitar arrependimentos de última hora.
O velho surge com destaque no meio da multidão. Dentro do coletivo, ele se destaca pela individualidade. Enquanto todos fazem parte de um grupo, navegantes ou multidão, ele é sozinho, à parte. Enquanto todos buscam por colocar seus nomes na história, ele entra nela anônimo:
Mas um velho de aspeito venerando, que
ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
e um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
Nessa hora, porém, um velho de aspecto respeitável, que ficava entre a multidão, balançando a cabeça três vezes negativamente, levanta a voz tão forte que os marinheiros podem ouvir do mar. Seu discurso é baseado em pura experiência:
As vozes da multidão, que se confundiam em meio a tantas lágrimas, de repente parecem calar, para dar lugar a uma voz mais forte, que impõe respeito e se faz ouvir. É a ala do Velho do Restelo:
- Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
O fraudulento gosto que se atiça
Cu'a aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
O velho diz que, enganados por belas palavras e estimulados pela vaidade os homens buscam fama e honra. Na verdade, essa busca só traz castigos e sofrimento para o homem ambicioso.
Os valores do mundo épico são avaliados por ele de modo negativo. A sua posição define-se pela oposição ao projeto expansionista. Sua crítica destrói todos os valores exaltados em Os Lusíadas:
Dura inquietação d’alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de remos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com que se o povo néscio engana!
A inquietação do homem ambicioso só provoca desamparos, adultérios e falência de reinos. As belas palavras usadas para estimular os navegantes são mentirosas, enganam o povo ingênuo e ignorante.
A épica caracteriza-se por contar histórias do passado. O velho do Restelo, porém, entra na épica sem ter passado e para questionar o futuro:
A que novos desastres determinas
De levar estes Remos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhes destinas
Debaixo d'algum nome preminente?
Que promessas de remos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
O velho questiona agora que novos perigos
e tormentos estariam por vir com a nova aventura dos portugueses.
Na estrofe seguinte, Camões une a mitologia greco-romana à cristã como bom renascentista cristão que era. O “insano”, alusão a Adão, é amaldiçoado por ter trazido o pecado e mitologia pagã é inserida na referência às idades de ouro e de ferro. Na Idade de Ouro, os homens viveriam em plena inocência, em contato com deuses, sem conhecer sofrimento e pecado. Com a degeneração da humanidade, chegamos à Idade de Ferro:
Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda d’outro estado mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Da idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
O velho culpa Adão por ter tirado a humanidade do seu estado de inocência colocando-a no pecado e na guerra.
Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá,
O velho reforça as palavras mentirosas usadas para disfarçar a vaidade e crueldade das conquistas, mostrando o desprezo do homem pela vida valorizada até por Jesus Cristo.
O imperialismo ganharia justificativa para o velho se tivesse fundamentação religiosa. Seu pensamento, portanto, é tipicamente medieval, caracterizado pelo Teocentrismo:
Não tens junto contigo o lsmaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Por que razão, pergunta o velho, procurar inimigos distantes, se por perto existem os mouros, inimigos religiosos? Essa razão, pelo menos, justificaria os perigos da guerra e também traria riquezas e glórias.
Mas, como vê que não é essa a motivação do expansionismo português, voltado totalmente para o aspecto mercantil, o velho prenuncia a destruição, o castigo que cairá sobre os homens ambiciosos:
Deixas criar às portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo,
Por que a fama te exalte e te lisonje,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, arábia e de Etiópia!
Mas preferem ir buscar inimigos distantes, desconhecidos, deixando o próprio reino abandonado. Tudo apenas para ter fama.
Ao contrário da épica, que promete eternizar os heróis desbravadores, o velho amaldiçoa-os, a começar pelo primeiro deles, a quem deseja a escuridão eterna do desconhecimento:
Oh! Maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
Se é justa lei que sigo e tenho!
Nunca citara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
O velho amaldiçoa o primeiro marinheiro, pedindo à sua fé que ele jamais seja louvado.
Camões usa aqui a mitologia greco-romana na fala do Velho do Restelo. Jápeto é um dos Titãs, o que o coloca na primeira geração de deuses. Seu filho, Prometeu, é considerado criador dos primeiros homens, que moldou em barro. Depois, anima-os dando-lhes a vida com fogo roubado de Zeus:
Trouxe o filho de Jápeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras — grande engano!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!
Lamenta também que Prometeu, filho de Jápeto tenha trazido o fogo dos céus que deu vida à humanidade para que esta vivesse em guerras.
A mitologia pagã continua presente no discurso do velho. Agora a referência é a Faetonte, filho do Sol, criado por sua mãe, sem saber a identidade do pai. Na adolescência, ao descobrir, pede uma prova ao Sol: conduzir o seu carro. Hesitante, o Sol permite, porém com várias recomendações. Faetonte, assustado com a altitude abandona a rota traçada e quase queimou a Terra; depois quase queimou os astros. Zeus, para evitar uma desgraça faz o jovem cair no rio Erídano. A outra referência é a Ícaro, filho de Dédalo. O pai arquiteto cria asas de cera para que ambos saiam do labirinto por ele criado. O jovem, entusiasmado com a novidade, aproxima-se demais do sol e tem a cera derretida, caindo no mar:
Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitetctor co’o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum comentimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração!
Mísera sorte! Estranha condição!
Por ambição, Faetonte aproxima-se demais da Terra guiando o carro do Sol e a queima em vários lugares. Ícaro, filho do arquiteto Dédalo, entusiasmado por poder voar, aproxima-se do sol, cujo calor derrete a cera de suas asas e cai no mar, que ganhou seu nome.
O Maneirismo em Os Lusíadas
Como foi visto, o velho do Restelo caracteriza-se por um pensamento medieval, opondo-se basilarmente ao gênero épico. Seu tom pessimista, ameaçador e profético encontra eco na última parte do poema, o Epílogo, em que Camões deixa vazar as suas apreensões quanto ao destino de Portugal:
Não mais, musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil tristeza.
Reaparecem agora na fala do próprio poeta, as criticas à cobiça, à ganância e à crueldade. Com isso Camões, a grande voz épica dos portugueses, mostra a incompatibilidade das grandezas e heroísmos que quer narrar e o aspecto mercantilista a que Portugal se volta, esquecendo-se dos valores morais.
Voltando à comparação com o velho do Restelo, podemos notar neste um tom mais radical. A grandeza e o heroísmo épico seriam simplesmente ilusões, mentiras usadas pelos governantes para estimular seus marinheiros. A única justificativa para a expansão seria o cristianismo.