Resumo Casa de Pensão - Aluísio Azevedo

Resumo do Livro Casa de Pensão de Aluísio Azevedo.

 3155
Resumo Casa de Pensão - Aluísio Azevedo
Casa de Pensão

Casa de Pensão (Aluísio de Azevedo)

         ROTEIRO BIOGRÁFICO

      Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalvez de Azevedo), irmão do teatrólogo Arthur Azevedo, nasceu em S. Luís do Maranhão, em 14 de abril de 1857 e morreu, com 56 incompletos, em 21 de janeiro de 1913, na capital argentina. Era diplomata, por concurso, desde 1895, tendo exercido funções em várias partes do mundo.

      O desenho e a caricatura eram a sua grande vocação. Acabou romancista. "Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho os meus romances, depois redijo-os." (Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Raimundo de Menezes – Liv. Martins Edit. P. 146). Foi um dos primeiros, entre nós, a procurar viver ou sobreviver de sua profissão de escritor.

      "Escrever tem sido até hoje aqui no Rio de Janeiro a minha grilheta, muito pesada e bem pouco lucrativa..." (Apud Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – 1957 – 2ª ed. Pág. 143). "Aluísio Azevedo é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão exclusivamente à custa da sua pena, mas note-se que apenas ganha o pão: as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga..." (Valentim Magalhães – apud Raimundo de Menezes – o.c.. pág. 29).

      Por isso, muitas vezes fabricou os seus romances para (sobre)viver. Alguns de seus livros são de "pura inspiração industrial", segundo expressão de José Veríssimo. (História de Literatura Brasileira – Liv. Francisco Alves – Rio – 1916 – pág. 357). Com alguma facilidade se pode notar o desnível que existe entre os seus romances.

De sua obra ficcional, bastante numerosa, o tempo, crítico severo, selecionou algumas que ficaram e ficarão na literatura naturalista brasileira. "De tudo isso só ficaram O Cortiço, O Coruja, Filomena Borges e O Livro de uma Sogra, são hoje a bem dizer, ilegíveis. Mas O Cortiço basta para lhe assegurar a posição de primeiro plano da nossa literatura." (Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1957 – 2ª ed. Pág. 144).

      "Casa de Pensão e O Cortiço, assinalemos desde já, situam-se no ponto mais alto da curva que descreve a evolução da obra de Aluísio Azevedo." (Josué Montello – in A Literatura no Brasil – vol II – pág. 61).

      "Quer em O Cortiço quer em Casa de Pensão, pôde realizar criações romanescas notáveis pela excelente fixação de alguns tipos, pela movimentação das cenas e pelo jogo das situações dramáticas." (Aspectos de Romance Brasileiro – Eugênio Gomes – Liv. Progresso Edit. – Salvador – s.d. pág. 129).

      Há alguma concordância na seleção das duas melhores obras de Aluísio Azevedo, conforme se pode ver pela crítica citada. Talvez o tempo tenha cometido uma injustiça, esquecendo O Coruja, uma estória muito humana de uma personagem tão bonita de alma e tão feia de corpo. Corre no livro uma lírica visão do homem.

      Diz Josué Montello que "Alcides Maia foi o único grande crítico a chamar a atenção para a alta importância de O Coruja, não apenas no panorama restrito da bibliografia de Aluísio, mas dentro do panorama geral de nossa literatura, ao afirmar que, na sua estranha personagem central, há uma criatura de arte que roça pelo símbolo e não tem rival no romance brasileiro." (A Literatura no Brasil – vol. II – pág. 62).

      Mas não há dúvida para a crítica atual que O Cortiço ficou definitivamente como sua obra-prima: apesar do caráter documental que o livro apresenta, como romance, supera o ocasional e o informativo, pela criação de personagens vivos, pela linguagem expressiva, pela superação das exagerações da escola naturalista.

      No melhor da obra literária de Aluísio Azevedo, nota-se a influência, quase sempre benéfica, dentro do campo de criação romanesca, de Zola e do autor de O Crime do padre Amaro, Eça de Queirós. Quando o autor parece escapar dos dois, torna-se um pobre "produtor de folhetins". (Alfredo Bosi – História Concisa da Literatura Brasileira – Cultrix – S. Paulo – 1970 – pág. 209).

      Pode-se classificar a obra de ficção do autor no seguinte quadro didático:

      Românticos:

      Uma Lágrima de Mulher (1879)

      Condessa de Vésper (1882) (com o título de Memórias de um Condenado)

      Girândola de Amores (1882) (com o título de Mistério da Tijuca)

      Filomena Borges (1884)

      A Mortalha de Alzira (1894)

      Demônios (1893) (Contos)

      Realistas

      O Mulato (1881)

      Casa de Pensão (1884)

      O Coruja (1885)

      O Homem (1887)

      O Cortiço (1890)

      Livro de uma Sogra (1895)

      Entrando para a diplomacia em 1895, encerrou definitivamente a sua carreira literária, em completo desencanto. Hoje, o que lhe dá renome, é a sua obra literária...

      Enredo de Casa de Pensão

      Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.

      Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, foçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.

      Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.

      "Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores." (pág. 166)

      A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...

      O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme.

Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...

      Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.

      "Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." (317). Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.

      Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...

      Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.

      Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.

      A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...

      Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris..."

      O Estilo da Época

      A obra de Aluísio de Azevedo que ficou na literatura brasileira é o seu romance naturalista. "Dominava a cena artística brasileira o sistema de idéias estéticas implantado pela poderosa geração de 1870, e que constituíram o complexo estilístico do Realismo-Naturalismo-Parnasianismo." (Afrânio Coutinho – Introdução à Literatura Brasileira – Rio de Janeiro – 1964 – 2ª ed.-pág. 207).

      O realismo tende para uma visão biológica do homem; o naturalismo, para uma visão patológica: um homem dominado pelo animalesco, marcado por taras e degenerecências, produto fatal da hereditariedade, uma apenas máquina sujeita às leis físico-químicas.

Os greco-latinos acreditavam na fatalidade (Moira) a quem estavam sujeitos os mesmos deuses. A ciência pseudo-ciência do século XIX ensinou ao naturalistas a crença na hereditariedade.

O personagem de tragédia que era escravo da fatalidade se torna escravo da hereditariedade para os naturalistas. Uma das confusões mais comuns entre eles era a da ciência com a literatura. Se o realismo nos deu um romance-documental, o naturalismo - verdadeiro laboratório – nos deu um romance-experimental, na mesma linha do Roman expérimental de Zola (1880).

      "Entendemos que um romancista deve ser ao mesmo tempo um observador e um experimentador. O observador expõe os fatos tais quais os observou, estabelece o terreno sólido em que se vão mover os personagens e acontecimentos; em seguida surge o experimentador e faz experiências, isto é, faz seus personagens se movimentarem em determinado enredo, de modo a patentear que a sucessão dos fatos é a exigida pelo determinismo das coisas estudadas." (Zola – apud Nelson Werneck Sodré – O Naturalismo no Brasil – Edit. Civilização Brasileira – Rio de Janeiro – 1965 – pág. 33).

      Nessa fidelidade a uma pseudo-realidade está o erro fundamental de um naturalista como Aluísio de Azevedo. A pressa com que realizou a sua obra romanesca – apesar do seu inegável talento – o fez fiel demais às formas e fórmulas do naturalismo a tal ponto que o romance mostre nitidamente os andaimes e as outras marcas de sua fabricação.

Os personagens se movem dentro do romance como verdadeiros robôs, teleguiados por forças mecânicas, dentro do seu meio, obedientes às forças atávicas, sem nenhuma liberdade de ser e de agir. O naturalista se esqueceu de "que os sinais exteriores são apenas uma parte da realidade, não podendo a literatura, pois, pelo levantamento apenas dos dados colhidos pela observação, dos dados exteriores, reproduzir a realidade; em segundo lugar, não compreendia que a realidade humana, que é o domínio de que a literatura se ocupa, não está nos indivíduos, mas na sociedade; finalmente, que a realidade não está no patológico, no anormal, no excepcional, mas no normal, no comum, no típico." (Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 37-38).

      Dentro do naturalismo, cabem afirmações tão dogmáticas quanto incompletas e, hoje, erradas, para uma concepção moderna do homem, como estas:

      "O romance deve ser um estudo de um curioso caso fisiológico"; "dados um homem forte e uma mulher insatisfeita, procurar neles as besta..."; "fazer em dois corpos vivos o que o cirurgião faz em cadáveres..." (Zola – Apud Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 19). Ou: "o vício e a virtude são os produtos químicos como o açúcar e o vitríolo" (Taine); "precisamos acanalhar a arte" (Courbet) (apud id. Ib. pág. 19).

      O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão:

      1) Desde a abertura do romance, Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes..." (Casa de Pensão – pág. 25).

O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." (ib. pág. 28). Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.

      2) O sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. A estória do romance se baseia num caso real, o caso do estudante Capistrano, até nos pormenores. Leiamos um resumo dos acontecimentos.

      "O emocionante caso de polícia, logo conhecido e popularizado sob a epígrafe de "Questão Capistrano", envolve dois jovens e estudantes da Escola Politécnica, antes da tragédia, grande e inseparáveis amigos: João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira.

      O tão debatido "Affaire Capistrano", que o povo e os jornais da época consagram, divide o público e nascem então acesas polêmicas. O carioca da época não fala noutra coisa, não discute outro assunto , não se preocupa senão com os dois processos criminais apesar de rotineiros, em que se misturam a honra de uma moça e o homicídio do seu sedutor.

      O caso principia trivialmente assim: dona Júlia Clara Pereira é modesta professora de piano, que, naquele ano de 1875, mora com os dois filhos Antônio Alexandre Pereira, estudante de engenharia, e Júlia Pereira, de 20 anos, em pequena casa da Rua Silva Manuel, nº 10. A pobre viúva baiana luta com inauditas dificuldades para prover a pequena família. As aulas de piano é que lhes mantêm as despesas da casa e dos estudos. A habitação apresenta-se em péssimo estado e resolvem alugar outra, no ano seguinte, bem maior e mais cômoda, na Rua do Alcântara, nº 71, e que, além do pavimento térreo, tem o sótão em forma de chalé.

      Como a nova moradia possui alguns quartos a mais, deliberam alugá-los, montando assim uma casa de pensão, muito comum naqueles tempos. Dessa maneira podem auferir outros lucros para os gastos sempre crescentes. Os dois primeiros pensionistas são colegas do filho: Mariano de Almeida Torres e João Capistrano da Cunha, rapazes procedentes do Paraná, tidos e haviados como de bom comportamento e acolhidos no seio da família Pereira sob o maior carinho e confiança.

      Em pouco, no convívio diário, nasce o namoro entre o estudante Capistrano e a jovem Júlia. O idílio pega fogo... Voraz concupiscência encarrega-se do resto... Uma noite – naquela de 13 para 14 de janeiro de 1876 – acontece o imprevisto: o rapaz não se contém e demanda o quarto da moça, desonrando-a às brutas, violentado-a...

      Na manhã seguinte, a jovem, entre lágrimas, conta à mãe o que lhe acontecera. A viúva não tem dúvidas: vai às falas com o moço. Este, como sói acontecer em casos desse jaez, dá um pretexto qualquer, procura adiar o compromisso do enlace para data bem remota, quando, então, reparará o dano causado. Enquanto isso, dias e meses decorrem sem nenhuma atitude do namorado, frio e indiferente ao cumprimento da palavra empenhada.

      Quando menos se espera, sai de casa e não volta mais. Some de uma vez. Todos ignoram-lhe o paradeiro. Deixa, apenas, na pensão a roupa, os livros, a mala... A mãe e o tutor da vítima apressam-se em procurar a delegacia de polícia mais próxima para a respectiva queixa. Comparecem acompanhados do advogado dr. Jansen de Castro Júnior, e exigem 50 contos de indenização pelos danos causados!

      O inquérito tem o seu seguimento natural. Concluído, é enviado a Juízo. Os jornais se encarregam de divulgá-lo num noticiário pormenorizado e profuso, enchendo colunas e colunas, dias e dias seguidos, a explorar morbidamente a curiosidade pública. A população apaixona-se pelo caso, tornado assim de repente, para conseguir fácil casamento... Outros, mais exaltados, são de opinião contrária, julgam-no digno de pena severíssima.

      O indiciado João Capistrano da Cunha, acolitado por três bons advogados, drs. Busch Varela e Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, comparece à barra do Tribunal, no dia 17 de novembro. Figura como promotor público interino o dr. Ferreira de Oliveira, que produz veemente acusação. A colossal massa popular, que enche o salão, vibra. Contradita-se o defensor do réu, dr. Busch Varela. À réplica do promotor, respondem os outros dois patronos: dr. Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, que conseguem a absolvição do seu constituinte, após calorosos debates, ovacionando os diversos advogados, e, à saída, prorrompe em palmas ao absolvido, carregado em triunfo pelos colegas. Oferecem-lhe ainda um banquete em regozijo, no Hotel Paris

      O desfecho tem viva repercussão na sociedade fluminense. A viúva e o irmão da vítima não se conformam com tão injustiça e iníqua sentença. Desesperado, o jovem Antônio Alexandre Pereira passa três dias pensando no que deve fazer.

      Precisa tomar atitude. A idéia fixa aflige-o, mortifica-o: necessita lavar a honra da família tão rudemente ofendida. Resolve fazer justiça com as próprias mãos. Impõe-se uma lição de mestre ao impune autor da desgraça da irmã, que chora, dia e noite, envergonhada e entre a profunda prostração.

      O acadêmico adquire uma arma de 25 cápsulas por 22$000 – uma tragédia atrai outra tragédia – e sai à procura do amigo da véspera. Encontra-o em olena na Rua da Quitanda, fronteiro ao nº 128, cerca das 10 da manhã, quando se dirige à casa do seu correspondente, um negociante da Rua de São Pedro. Pelas costas alveja-o com cinco tiros e fere-o gravemente com apenas um no pulmão esquerdo. O rapaz corre para o interior do armazém, fugindo a novo disparo e logo cai sem forças ao chão. Está morto!

      O agressor tenta, em vão, escapar, quando é preso em flagrante por Augusto César de Mascarenhas, que passa na ocasião, e entrega-o à Justiça.

      O pulmão da vítima achava-se atrofiado, podendo morrer em breve tempo, constataram os médicos na autópsia.

      A rapaziada da Politécnica exalta-se e promove uma série de homenagens ao colega morto: veste-se de luto, chora, vai incorporada ao enterro, que se transforma em apoteose pública, carregado a mão, por estudantes e políticos que comparecem concitados pela astúcia partidária de Saldanha Marinho, um dos advogados do morto. O próprio Visconde do Rio Branco, diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias.

      O processo de homicídio corre os trâmites legais. O acadêmico Antônio Alexandre Pereira senta-se no banco dos réus a 20 de janeiro de 1877. É defendido pelo mesmo advogado que figurara no caso da irmã, o dr. Jansen de Castro Júnior. Os debates atraem mais gente que no episódio anterior do defloramento. Agora a coisa é outra: as antipatias populares, até ontem contra a família Pereira, transforma-se então em simpatias pelo assassino... O mesmo júri, que absolve o primeiro, absolve o segundo! Inocenta-o por unanimidade de votos! Também uma salva de palmas acolhe o veredictum no Tribunal. É o acusado carregado em triunfo pelos mesmos colegas, que ovacionaram o morto da véspera...

      Em rápidos traços, eis as duas tragédias que abalam o Rio de Janeiro daqueles tempos: a famosa "Questão Capistrano", que vai, sete anos depois, inspirar o romancista Aluísio Azevedo no enredo do livro a que dará a epígrafe de "Casa de Pensão".

      (Raimundo de Menezes – Aluísio de Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Editora – S. Paulo – 1958 – pág. 147 a 150).

      3) Os personagens, na sua totalidade, são retratados sob o ângulo patológico: são casos anormais.

      Amâncio aparece como um super-excitado sexualmente, condicionando proximamente pelo ambiente da casa de pensão e remotamente pelo sangue e pela educação; Mme. Brizard e Coqueiro se apresentam como gananciosos a ponto de fazerem negócio à base da cunhada e irmã; Nini sofre de crises agudas de loucura histérica, estrebuchando e caindo diante de Amâncio; Lúcia e o marido se mostram também tipos esquisitos, ela pelo sexo e ele por estranho alheamento.

Amélia também se mete, de cambulhada, nessa enxurrada de sujeiras tentando um bom negócio de sexo e dinheiro... A própria D. Hortênsia, mulher do Campos, manifesta sinais de insatisfação sexual: apesar das negativas iniciais diante das propostas... Essas personagens, quase todas, poderiam mudar-se da Casa de Pensão para outro romance do autor, mais exagerado, ao sentido naturalista: O Homem. E se dariam muito bem no novo ambiente ainda mais patológico. A casa de pensão não se parece com um pequeno e confuso hospital? Os seus moradores são, em geral, verdadeiros doentes;

      4) Quebra-se o esquema romântico da vitória do bem sobre o mal, do triunfo do(s) herói(s). Tudo se mistura na vida, trigo e joio, ninguém consegue separá-los, perde-se a consciência do bem e do mal. Afinal, quem é o bom e quem é o mau? Se, até certo momento, a opinião pública esteve ao lado de Amâncio, quem nos garante que, para o final, não estaria já mudando para o apoio a João Coqueiro? Se o assassino for a julgamento, defendido pelo inteligente e chicanista Dr. Teles, certamente será também absolvido...

      Além disso, não existem ideais a que aspiram os personagens: eles ficam reduzidos ao terra a terra, aos aspectos, fisiológicos e animalescos, aos grandes egoísmos que fazem os homens sórdidos e vis. Não há, em ninguém, traço algum de grandeza, nem nos personagens principais, nem nos secundários. Essa visão negativista e materialista exclui qualquer consciência moral no julgamento dos atos e personagens.

E, dentro do quadro de pensamentos e ações do casal Mme. Brizard e João Coqueiro, o que se faz é praticar o princípio de que os fins justificam os meios. Assim, o homem ficar reduzido a um amontoado de contradições, de secreções, de completo materialismo e mecanicismo. Tudo é esquematizado de acordo com uma obediência cega à lei de causalidade: ficam eliminadas as ações e reações pessoais para dar lugar às reações de massa, sem liberdade. Os personagens não se movem, são movidos e levados, cada um, para o seu desenlance.

      5) Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.

      "Campos entrou no seu escritório e foi sentar-se à secretária. Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par..." (pág. 13).

      Um retrato:

      "Seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fluidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa. Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro, nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e ruivo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quando muito, vinde e dois..." (pág. 55, 56 – É João Coqueiro).

      Descrição da casa de pensão:

      "A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro. Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo. Três largas janelas de sacada, guarnecidas de cortinas brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e gasta, inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes laterais, um detestável retrato a óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos, vasos bonitos de louça da Índia, cheios de areia até à boca..." (pág. 96). E a descrição continua pela página seguinte.

      Ainda um outro retrato: Amélia em dia de festa:

      "E de fato Amélia nesse dia estava encantadora. Vestia fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor-de-rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia-se-lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas. O vestido curto, muito cosido ao corpo, enluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família. Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão artística..." (pág. 97 – E a descrição continua...)

      E o tísico do quarto nº 7:

      "O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia.

      A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curava, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentiam-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvazamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas da dentadura..." (pág. 219 – A descrição continua...)

      O capítulo XVI começa com um longo e minucioso pesadelo de Amâncio...

      6) O naturalista manifesta tendência reformadoras: quando apresenta um mundo inferior, cheio de taras e doenças, com os seus personagens marcantemente anormais, a sua preocupação é a melhoria das condições sociais e geradoras de todo esse quadro clínico muito ruim. O narrador em terceira pessoa, onisciente e onipotente, de vez em quando faz seus comentários à margem.

      "O que se lança ao peito da amante desde logo arde e evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno, brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite..." (pág. 43).

      "Assim sucede sempre aos filhos educados à portuguesa, cujos pais sentem vexames de lhes patentear o seu amor." (pág. 167)

      7) Com relação ao vocabulário o romancista naturalista manifesta preferências por palavras científicas ou pseudo-científicas na busca de exprimir-se com o máximo de exatidão. Vejamos alguns exemplos:

      "Conseguiram fazê-lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos..." (pág. 29).

      "... não se contrai ao fartum insalubre das variolóides..." (190)

      "... no desespero de sua ortopnéia..." (219)

      "... na sua distanasia." (220)

      "... desde a ponta dos dedos até os bíceps" (237)

      "... boca devastada por uma anodontia horrorosa." (299)

      Aspectos Sociais

      Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral.

O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. No "Cortiço" o meio social é mais baixo; na "Casa de Pensão" é médio.

      Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na "Casa de Pensão" de Mme. Brizard.

Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou.

Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." (A Correspondência de Fradique Mendes – Lello e Irmão Edit. Porto – 1952 – pág. 235). O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...

      Que vocação tinha Amâncio para a medicina?

      "Não se trata aqui de fazer um médico, trata-se de fazer um doutor, seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma profissão, trata-se de obter um título. Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade." (Casa de Pensão – pág. 43). A saída de Amâncio de seu meio provincial, por necessidade de estudar, produz uma pletora no Rio de Janeiro de tantos e tão diversos tipos de estudantes, provenientes dos mais variados pontos do nosso imenso país: no Rio eles aprendem com facilidade, com verdadeiros professores, as artes não de estudar, mas de passar de ano. Coqueiro foi quem instruiu seu protegido Amâncio nos truques dos apadrinhamentos e protecionismos especiais (pistolões) para ser aprovado, apesar da maré cheia de sua ignorância.

      Como conseqüência do meio e das intenções dos donos da pensão, acontece, de modo fatalístico, a sedução de Amélia. O fato tem repercussões sociais: quase toda a classe estudantil fica a favor do estudante, vítima do meio, dos ardis de todos (Mme. Brizard e Coqueiro), da própria Amélia... dos camarões. No apoio a Amâncio estava um apoio também ao machismo, mas de ... conquistador. Amâncio aparece sempre condicionado e pré-determinado para o seu final trágico, por causa do extremo sensualismo. É o erótico que tenta conquistar até a mulher de seu protetor, o Campos.

O erotismo é apontado como um dos nossos defeitos, por excesso, em Bandeirantes e Pioneiros (Paulo Prado). Sobre os excessos sexuais e suas doenças, Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala) faz um trocadilho muito significativo: "no Brasil, antes da civilização, tivemos a sifilização..." Mme. Brizard e João Coqueiro são apresentados ao leitor como antipáticos e condenáveis, pela sua ganância de dinheiro, pelo seu mau caráter: ambos estão comprometidos gravemente no verdadeiro negócio de vender ou alugar Amélia. Ela era o meio de arrancar dinheiro fácil do rico Amâncio.

A culpa principal é, sem dúvida, a própria Amélia, pivô da tragédia. Refletindo os seus próprios problemas familiares, Aluísio Azevedo aponta também erros da educação caseira e escolar. O pai do autor o tratava com certa distância, como o pai de Amâncio que era secarrão, sem diálogo, duro em apoiar os métodos coercitivos e antipedagógicos do prof. Pires.

Tanto o pai como o professor ficaram como verdadeiros espantalhos e deixaram marcas na formação do rapaz, tornando-o recalcado e hipócrita. Por seu lado, D. Ângela se mostra sempre muito submissa ao marido, à moda antiga, e muito sentimental no relacionamento com seu filho. Então, os extremos, materno e paterno, se juntam para deformar para sempre a educação de Amâncio.

      Outro fator decisivo na corrupção final do estudante é o dinheiro fácil com que ele se engolfa em farras e boêmia e se afasta dos livros. É com razão que Lúcia Miguel Pereira sintetiza toda a dinâmica do romance em duas palavras fundamentais:

      "Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade". (Prosa de Ficção – Liv. José Olympio Edit. – Rio de Janeiro – 1957 – 2ª ed. – pág. 152).

      Ainda como exemplo desse vento social que sopra por todo o romance e pelos outros melhores do autor, note-se o estudo que faz dos movimentos de massa, as flutuações da opinião pública, a posição a favor de Amâncio e, para o fim, uma clara insinuação de que já começa a tomar partido a favor de Coqueiro e sua irmã. O autor não aprofunda esse seu estudo de psicologia de massa, mas apresenta, apesar de superficial, um quadro interessante e válido.

      Se o romance continuasse..., o leitor pode deduzir, com bastante garantia, a massa popular estaria pressionando o júri para a absolvição de João Coqueiro, por legítima defesa da honra da irmã.

      Linguagem

      Não se pode dizer que a lingua(gem) do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.

      Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise. É uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal. São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Creio que este lusitanismo reflete o tempo: era moda brasileira imitar a sintaxe portuguesa. Tenho exemplos de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Martins Pena, Machado de Assis... Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum. Pode-se definir o fenômeno de colocação como o faz Caldas Aulete:

      "Apossínclise: intercalação de alguma ou algumas palavras entre o verbo e o pronome complemento átono, como, por exemplo: "o que lhe eu contei, em vez de: o que eu lhe contei..." (Edit. Delta S.A. – Rio – 1964 – 5ª ed. in verbete).

      O hoje esquecido gramático português, antigamente muito em voga, Cândido de Figueiredo, publicou uma obra em três volumes com este título: "O que se não deve dizer".

      Como são muitos os exemplos colhidos no romance, exemplifiquemos apenas:

      "Que se não deixasse levar pelos pândegos..." (55)

      "... o que lhe não desejo" (56)

      "Amâncio já se não lembrava" (62)

      "... porque ela se não desprendesse logo" (73)

      "São dessas coisas que se não explicam" (103)

      "... hás de ver que te não faltará nada" (104)

      "Amâncio já os não distinguia" (119)

      "... já se não preocupa" (127)

      "... já se não podia conter" (143)

      "... de tal modo que se não pode levantar da cama" (169)

      "... que se não deixasse visgar..." (205)

      "Que ela já o não deixava sair" (234)

      "Se me não engano" (334)

      O tratamento usado pelo autor também é diferente do comum no Brasil (exceto Rio Grande do Sul, por exemplo): tu em vez de você. Os personagens, quando se ratam por iguais, empregam sempre a Segunda pessoa do singular.

      "Bem, de acordo, respondeu Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de senhor. Entre rapazes não deve haver cerimônias mal entendidas; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos desde já por tu" (56).

      "Mesmo escrevendo o diálogo quase sempre em norma culta, Aluísio soube fixar algumas características dos níveis mais baixos..." (Dino Preti – Siciolinguística – Cia Edit. Nacional – S. Paulo – 1974 – pág. 137). Conforme a situação e o status do personagem, a linguagem desce a níveis inferiores.

      O vocabulário do autor, às vezes, soa esquisito aos nossos ouvidos. Maria de Lourdes Teixeira cita alguns exemplos:

      À página 56 encontramos esta frase: "... continuava a parolar com embófia". Ora, o substantivo embófia ou sua variante, empófia, de origem asiática e muito encontrável em frei João dos Santos, em sua obra Etiópia Oriental, não me parece usado no Brasil.

Da mesma forma, o verbo aiar (gemer), particularmente caro a Castilho, e que jamais vi em nossos autores, lá está na página 63: "Amâncio, muito prostrado, mole, a virar-se de uma para outra banda, aia-va sempre". Na página 65 aparece o adjetivo retardia (empregado com freqüência por Filinto Elíseo), em lugar de retardatário, tardo, vagaroso. Na página 66: "o homem do lixo entrava, e saía, familiarmente, com o seu gigo às costas".

      Gigo, em vez de cesto ou cabaz, vocábulo aquele muito usado por Ramalho Ortigão nas Farpas. Na mesma página se refere a "uma escova de fato", em lugar de escova de roupa, forma aquela não brasileira e que dá azo a duplo sentido. E linhas abaixo: "encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos", frase cuja construção nada tem de brasileira, parecendo antes coligida de autor português. Na página 105 o romancista menciona uma "corbelha de farinha"; isto é, a nossa familiar e nacionalíssima farinheira. Lembre-se a propósito que tal expressão, corbelha, de boa linhagem vernácula mas admitida em uso no Brasil através do francês, é encontrada em Diniz, no Hissope, e em Castilho, nas Geórgicas. Na página 121 lá está, por sinal que na boca de uma francesa – Madame Brizard – certo ditado arcaico português que se encontra na Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos: "por aí não irá o fato às filhoses".

No clássico citado: "não vay por ahi o gato aos filhós." Logo na página seguinte Aluísio emprega o substantivo godilhão, em lugar de nó, grumo, ou qualquer outro sinônimo de uso corrente no Brasil: "formar-lhe godilhões na garganta". Na página 192 ressalta em certa frase outro vocábulo estranho e ouvidos nacionais: "A sua primeira idéia foi chamar o Pereira e mostrar-lhe a mulher no latíbulo do amante". O substantivo latíbulo, que me lembre nunca encontrado em outro autor brasileiro (e que significa "antro de pecado, esconderijo da perdição), é muito usado por Bernardes da Nova Floresta e por outros clássicos portugueses.

      (Esfinges de Papel – Edart – S. Paulo – 1966 – pág. 138).

      "A obra de Aluísio Azevedo, portanto, revela-se útil, sobretudo como documento da língua e da cultura de nossa sociedade, nas décadas de 80 e 90, ainda muito impregnadas da influência portuguesa. Além disso a rudeza dos temas que abordou nos permite o conhecimento de uma linguagem afetiva popular, que em muito contribui para a retratação dos níveis de fala de suas personagens". (Dino Preti – ib. pág. 140).

      Técnicas Narrativas

      O problema da criação de um personagem romanesco vira mistério até para o próprio autor. Criado o personagem, ninguém sabe, nem o seu criador, até onde trabalhou a sua imaginação e onde começa a simples observação da realidade circunstante. O personagem se pode identificar com esta ou aquela pessoa real? Ou nasceu totalmente da imaginação onipotente do romancista? Nem um extremo nem outro pode corresponder à realidade da criação literária

      "O ficcionista pode usar uma pessoa que conheceu como ponto de partida para a composição duma personagem, mas tendo o cuidado de evitar a fotografia servil. É justamente durante esse processo de despistamento ou então no minuto em que o autor resolve criar uma personagem sua, sua mesmo, que o computador insidiosamente começa a mandar-lhe mensagens, e o autor corre o risco de usar esses elementos com orgulho demiúrgico, convencido de que está mesmo criando do nada..." (Érico Veríssimo – Aguilar – vol. III – pág. 83). Note-se que o computador a que se refere Érico Veríssimo é o fantástico inconsciente...

      Em Casa de Pensão, o autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais. (Ver Estilo de época). Temos portanto um romance à clef, romance de chave, porque os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais. Assim podemos identificar os figurantes principais.

      Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos = João Capistrano da Silva, estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.

      Amélia ou Amelita = Júlia Pereira, a moça seduzida, pivô da tragédia.

      Mme. Brizard = é uma viúva, dona da casa de pensão: D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino.

      João Coqueiro = Janjão = Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido.

      Dr. Teles de Moura = Dr. Jansen de Castro Júnior, advogado da família da moça.

      João Capistrano foi acusado como incurso nas penas do art. 222, do Código Criminal do Império: "Ter cópula carnal por meio violento ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas: de prisão por três ou doze anos, e de dotar a ofendida."

      O autor toma visível posição a favor de Amâncio e contra Amélia, João Coqueiro e Mme. Brizard: (Raimundo de Menezes – Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Edit. – S. Paulo – 1958 – pág. 151). O mesmo autor me informa que o romance já estava, em semente, em Casa de Cômodos (pág. 342).

      A narrativa não obedece a uma ordem cronológica: o cap. I coloca o leitor diante de Amâncio e Campos, já no Rio de Janeiro. Depois é que o autor volta ao Maranhão para contar alguma coisa, o que é fundamental dentro das fórmulas naturalistas, da vida e da educação do personagem. Recorda a escola e a família, o leite que mamou da ama negra, leite contaminado, a dura opressão do professor e do pai... tudo para condicionar fatalisticamente o personagem e fazê-lo chegar, sem liberdade, aonde tinha que chegar. São os truques repetidos pela escola naturalista. (Veja-se, por exemplo, o mesmo determinismo em O Missionário de Inglês de Sousa). Essa volta é uma técnica comum que hoje se chama flash back, palavra tomada de empréstimo ao cinema.

      Depois, a narrativa caminha, de modo geral linearmente e os episódios se passam só no Rio de Janeiro. Amâncio não faz viagens, planeja apenas a volta à Província: viagem que não chega a realizar pelos incidentes que o leitor conhece. Um pequeno paralelo que se fizesse entre o autor e Machado de Assis (lembrem-se de que Memórias Póstumas de Brás Cubas é da mesma data que O Mulato (1881) mostraria que Aluísio, diferente do romancista carioca, não faz descidas em profundidade na alma dos personagens. Eles se forma superficialmente sem pesquisas psicológicas, uma das características do autor de D. Casmurro. Sem desvalorizar o maranhense, pode-se afirmar que Machado de Assis realizou uma obra muito mais orgânica, até mesmo por vocação, por maior talento. Aluísio escreveu sob pressão ou opressão, enquanto tinha necessidade de sobreviver e até contrariado porque, segundo sua própria confissão, tina a vocação da pintura, do desenho, da caricatura, não da literatura. Acabada a necessidade premente de sobreviver, parou de escrever, definitivamente, engolfando-se na diplomacia.

      Como narrador fora da estória, como já foi observado em outro lugar, o autor costuma fazer algumas observações marginais, inclusive como intenções críticas, sobre educação, sobre os personagens, sobre os fatos.

      Pareceu-me feliz o corte final na narrativa para fechar o romance: não fez nenhum comentário a mais, o que seria excrescente. Já no Cortiço, Aluísio Azevedo ainda acrescenta à tragédia final de Bertoleza um pequeno e inútil comentário. Terminando como terminou deixa ao leitor o trabalho de perguntar o que irá acontecer ainda, como ficarão as coisas, sobretudo a situação de João Coqueiro. Será ou não absolvido? Se os fatos reais nos dão uma resposta (o assassino foi absolvido), o romance deixa em aberto. A mãe de Amâncio também desaparece com o final do romance numa atitude indecifrável: quais foram as suas reações diante do retrato do filho morto? Indecifrável no texto da narrativa e mito fácil para o sentimento e a imaginação de qualquer leitor.

      Como um naturalista jura fidelidade à vida e à realidade, segundo as suas concepções de vida e de realidade, o final está de acordo: não há uma vitória do(s) herói(s), não há um fecho feliz. Quem é que diz que a vida obedece aos nossos desejos planos?

      Crítica

      1) "O autor começa entrando logo em cheio na ação do seu romance e, uma vez penetrando no círculo em que vivem os seus personagens, não se afasta mais deles, como que saturado de todos os elementos constitutivos do ambiente físico e moral da famosa casa de pensão, assunto do seu livro. Como trabalho de observação, o romance tem tudo quanto é lícito desejar em uma composição desta ordem.

Fundando-se em um fato verdadeiro, que a cidade do rio de Janeiro presenciou há anos, compreende-se que a lógica dos caracteres mais dramáticos dessa história não podia falhar. Tendo, além disto, o romancista vivido em estabelecimentos da natureza do que descreve, estava perfeitamente habilitado a dar toda a unidade possível à vida do grupo humano que se encarregou de estudar................................"

      "A Casa de Pensão é um microcosmo: todos os elementos que o constituem, por um processo felicíssimo de cerebração inconsciente, atraem-se, repelem-se, aglutinam-se e dão, por último, uma sensação que pode muito bem ser comparada à reminiscência, em dias febricitantes e de hiperestesia mnemônica, de sucessos presenciados em alguma parte." (Obra Crítica de Araripe Jr. – M.E.C – Casa de Rui Barbosa – Rio – 1960 – vol. II – pág. 84 e 85).

      2) "Ele trouxe à nossa ficção mais justo sentimento da realidade, arte mais perfeita de sua figuração, maior interesse humano, inteligência mais clara dos fenômenos sociais e da alma individual, expressão mais apurada, em suma, uma representação menos defeituosa da nossa vida, que pretendia definir. Dos que aqui por vocação ou mero instinto de imitação demasiado comum das nossas letras, seguiram o naturalismo e se nele ensaiaram, o que mais cabalmente realizou este feito da nossa doutrina literária foi Aluísio Azevedo, com uma obra de mérito e influência consideráveis..." (História da Literatura Brasileira – José Veríssimo – Liv. Francisco Alves – Rio – 1916 – pág. 336).

      3) "Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade. Entretanto, e nisso reside a prova do talento de romancista de Aluísio Azevedo, tomados em conjunto, esses bonecos de engonço adquirem inesperada vitalidade. Se a vida interior é quase nula, a vida de relação é ativa e real. Desde que se trate de contatos superficiais, a narrativa se movimenta, ganha força e nervo... Da soma das criaturas e duas dimensões surge uma entidade nova – a casa de pensão, com os seus moradores de uma psicologia especial, pobres criaturas desenraizadas pela enxurrada da vida, provenientes dos meios os mais diversos, que adquirem uma espécie de alma comum, feita pela solidariedade negativa que as une." (Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1957 – 2ª ed. pág. 152 – 153).

      4)" Em Casa de Pensão, realmente, há qualidades marcantes de ficcionista, e o ambiente, o das habitações coletivas, conhecido do autor, e a marca que deixa nas criaturas, também por ele experimentada, ficam excelentemente representadas.".....

      "Aluísio Azevedo é um exemplo, no naturalismo brasileiro, do escritor que trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o desgregamento romântico, a que se submete demasiado facilmente, embora lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa peado, a que obedece a contragosto." (História da Literatura Brasileira – Nelson Werneck Sodré – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1960 – 3ª ed. – pág. 360 – 361).

      5) "Em Casa de Pensão – cronologicamente, o primeiro grande romance de Aluísio, depois de O Mulato, o romancista marca a transição de dois ambientes: o do Maranhão, de que provinha, e o do Rio de Janeiro, a que se adaptara. Este livro, pelo aglomerado humano que esboça, é uma espécie de preparação para a experiência mais profunda e mais ampla de O Cortiço. Nele encontramos o Aluísio aprimorado, senhor da técnica da narração, mestre da fixação de tipos e caracteres, a conduzir o drama ou aventura de seus personagens com o rigor da justa medida. Não há excessos em suas páginas. O próprio desfecho que poderia parecer arbitrário, é uma transposição do caso real para o romance." (Aluísio Azevedo – Josué Motello – Agir – 1963 – pág. 11 – 12).

      6) "Em Casa de Pensão, de 1884, que firmam melhor as qualidades do escritor. Nesse romance mostra-se ele mais senhor do ofício. A apresentação dos personagens, a descrição das cenas, a evolução do enredo, são realizados com maior senso de objetividade e equilíbrio. Reveste-se de toda a sobriedade o momento em que Amâncio se apresenta a Campos, interrompendo-lhe a correspondência para o norte. Nem são destituídos de vida episódios de boêmia carioca. Muitos personagens exsudam vida, como aquele Campos ou a esposa, Hortênsia. Não se isenta, entretanto, de lacunas. Há criaturas, como João Coqueiro ou Amelinha, em cujos perfis o autor se gasta em tintas naturalistas e que acabam por se afogar no convencionalismo. Há outros, como Amâncio, de que temos a impressão de que vivem de real vida para logo em seguida sentirmos baldos de realidade." (A Literatura Brasileira – O Realismo – João Pacheco – Edit. Cultrix – S. Paulo – 1963 – pág. 135).

      7) "Não resta dúvida que a obra de Aluísio Azevedo resiste ao tempo e ao desgaste das escolas, por revelar força criadora incomum em nossa ficção e por se conjugarem nela a observação da realidade brasileira com seus problemas sociais, a experiência humana e o conhecimento artesanal. E todos esses atributos impulsionados por intensa vibração participante, bem típica não só do temperamento do autor como de sua filiação naturalista.

      Respeitadas as características de cada um e as conseqüentes diferenciações, pode-se dizer que as obras de Aluísio Azevedo, José de Alencar e Machado de Assis constituem as colunas de resistência do romance brasileiro do passado. E nessa trindade de valores o lugar ocupado pelo maranhense tem, além disso, especial significação historiográfica, sendo ele como é o tal como o concebeu Zola, com os seus postulados: a crítica da sociedade, "a ciência dos temperamentos", a anatomia dos caracteres, a patologia das paixões, a determinação exata das circunstâncias, as finalidades éticas e, de acordo com o pensamento de Eça de Queirós, os ideais de justiça e verdade."